Uma das questões mais intrigantes levantadas pela antropologia
filosófica do século XX é o que se tem chamado de “predicamento humano” ou “o
absurdo da vida sem Deus” numa cultura pós-cristã. Seus expoentes, dentre os
quais destaco o filósofo e teólogo W.L. Craig,[1] procuram mostrar as
conseqüências desastrosas para a humanidade caso a existência de Deus seja
apenas uma invenção da mente humana.
De acordo com Craig, essa nova abordagem antropológica é um
pouco parecida com o existencialismo, pois entende-se que seus precursores
também foram precursores do existencialismo.[2] Neste caso, é
importante compreender minimamente como Sören Kierkegaard (1813-1855) encarava a
existência humana, uma vez que ele é considerado o pai do
existencialismo.
A maioria dos comentadores de história da filosofia entendem que
não é possível compreender a obra de Kierkegaard sem levarmos em consideração
sua vida pessoal. “Certamente, sem qualquer conhecimento da sua vida turbulenta,
é muito difícil entender o que Kierkegaard quer dizer”.[3] De fato, sua vida
privada teve uma papel determinante em sua obra, haja vista seu estilo
fortemente pessoal. A relação conturbada com um pai amedrontado por Deus, o
abandono da carreira pastoral, o término do noivado com a jovem Regina Olsen, a
desencanto com o cristianismo estatal dinamarquês de seu tempo, seus tormentos
interiores; tudo isso servirá de tinta para a pena de Kierkegaard.
Apesar de não ser um teórico sistemático, o que marca a
filosofia de Kierkegaard é sua compreensão acerca da natureza humana (alias, era
contrário aos sistemas, principalmente o sistema dialético de Hegel).[4] Mas isso não faz de
Kierkegaard um pensador raso ou um falastrão. Colin Brown afirma que:
A seu próprio modo peculiar, Kierkegaard enxerga a vida
com mais profundidade do que a maioria dos filósofos. Seu entendimento de certos
aspectos da experiência humana é muito mais profundo do que o dos seus
opositores mais ortodoxos [5]
Mas como Kierkegaard encarava a natureza do homem? Não ha dúvida
que sua visão do homem é predominantemente negativa. Arrisco dizer que sua visão
da natureza humana segue a antropologia pascaliana, que ressalta a condição
miserável do ser humano. Na verdade, podemos ver claramente em seus textos,
expressões como: culpa e pecado, impotência e desunião, medo e desespero. É como
se o homem estivesse colocado num mundo paradoxal e sem sentido.
Em sua tese de doutorado de filosofia,[6] Kierkegaard encerra o
homem debaixo da angústia, que advém do pressentimento da liberdade frente a
tudo o que é finito. Todavia, isso não deve nos levar necessariamente ao
desespero, mas deve nos empurrar em direção a fé em Deus, na qual somos
redimidos. Fé, que para Kierkegaard, não é mediada racionalmente ou
filosoficamente fundamentada em argumentos, como nos sistemas racionalistas, mas
antes um salto cego no escuro, conforme exposto na obra Temor e Tremor.
No caminho da vida, o homem procura fugir da angústia, e explora
diferentes possíveis existenciais, que são etapas do caminho, ou aquilo que os
comentadores chamam de “Lei dos três estágios”[7] que Kierkegaard desenvolve em vários escritos. Os
estágios são: o estágio estético, o estágio ético e o estágio religioso.
No estágio estético, o ser humano vive apenas no nível sensual,
centrado em si mesmo, no prazer e desfrute material. Como tal vida leva a
insatisfação e ao desespero, o homem desesperado salta para um nível mais
elevado de existência, o estágio ético, em que procura não mais viver para si
mesmo, mas de acordo padrões objetivos de moralidade. Porém, tal pretensão ética
nunca é alcançada, levando mais uma vez a culpa e ao desespero. A salvação da
existência humana acontece quando o homem dá mais um salto no escuro; o salto
para a vida religiosa, na qual “o homem abandona a si mesmo e se entrega a fé
unicamente”.[8]
Assim, não é exagero afirmar que toda a filosofia de Kierkegaard
pretende conduzir o homem para a fé, onde este encontra-se a si mesmo. Mas não
faz isso argumentando mediante bases lógicas ou racionais, como, por exemplo, um
Anselmo ou Tomás de Aquino. Antes, sua estratégia apologética (se é que podemos
falar em apologética no pensamento de Kierkegaard) é deflagrar o predicamento
humano, sua condição desesperadora sem Deus, o vazio da existência no nível
estético e ético. Não resta dúvida de que para Kierkegaard “o homem encontra o
sentido de sua existência somente na fé em Deus e na radical tomada a sério do
cristianismo”.[9]
[1]Cf. W.L. Craig. A veracidade da fé cristã: apologética
contemporânea, p. 51-74.
[2]Destaque para Blaise Pascal, Fiódor
Dostoiévski e Kierkegaard.
[3]Colin Brown. Filosofia e fé cristã, p.
108.
[4]Em suas próprias palavras: “O presente autor
de modo algum é um filósofo. Não entendeu qualquer sistema de filosofia, se é
que existe algum, ou esteja terminado […] O presente autor de modo algum é um
filósofo. E, sim, poetice et
eleganter, um amador que não redige sistema nem promessas de sistema”. (Temor e Tremor,
prólogo).
[5]Ibid, p. 112.
[6]Cf. Sören Kierkegaard. O conceito de angústia. Petrópolis:
Vozes, 2010.
[7]Cf. Emerich Coreth. Deus no pensamento filosófico, p.
327.
[8]Ibid, p. 328.
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