domingo, 5 de agosto de 2012

O desespero da vida sem Deus segundo Kierkegaard


Uma das questões mais intrigantes levantadas pela antropologia filosófica do século XX é o que se tem chamado de “predicamento humano” ou “o absurdo da vida sem Deus” numa cultura pós-cristã. Seus expoentes, dentre os quais destaco o filósofo e teólogo W.L. Craig,[1] procuram mostrar as conseqüências desastrosas para a humanidade caso a existência de Deus seja apenas uma invenção da mente humana.
De acordo com Craig, essa nova abordagem antropológica é um pouco parecida com o existencialismo, pois entende-se que seus precursores também foram precursores do existencialismo.[2] Neste caso, é importante compreender minimamente como Sören Kierkegaard (1813-1855) encarava a existência humana, uma vez que ele é considerado o pai do existencialismo.
A maioria dos comentadores de história da filosofia entendem que não é possível compreender a obra de Kierkegaard sem levarmos em consideração sua vida pessoal. “Certamente, sem qualquer conhecimento da sua vida turbulenta, é muito difícil entender o que Kierkegaard quer dizer”.[3] De fato, sua vida privada teve uma papel determinante em sua obra, haja vista seu estilo fortemente pessoal. A relação conturbada com um pai amedrontado por Deus, o abandono da carreira pastoral, o término do noivado com a jovem Regina Olsen, a desencanto com o cristianismo estatal dinamarquês de seu tempo, seus tormentos interiores; tudo isso servirá de tinta para a pena de Kierkegaard.
Apesar de não ser um teórico sistemático, o que marca a filosofia de Kierkegaard é sua compreensão acerca da natureza humana (alias, era contrário aos sistemas, principalmente o sistema dialético de Hegel).[4]  Mas isso não faz de Kierkegaard um pensador raso ou um falastrão. Colin Brown afirma que:
A seu próprio modo peculiar, Kierkegaard enxerga a vida com mais profundidade do que a maioria dos filósofos. Seu entendimento de certos aspectos da experiência humana é muito mais profundo do que o dos seus opositores mais ortodoxos [5]
Mas como Kierkegaard encarava a natureza do homem? Não ha dúvida que sua visão do homem é predominantemente negativa. Arrisco dizer que sua visão da natureza humana segue a antropologia pascaliana, que ressalta a condição miserável do ser humano. Na verdade, podemos ver claramente em seus textos, expressões como: culpa e pecado, impotência e desunião, medo e desespero. É como se o homem estivesse colocado num mundo paradoxal e sem sentido.
Em sua tese de doutorado de filosofia,[6] Kierkegaard encerra o homem debaixo da angústia, que advém do pressentimento da liberdade frente a tudo o que é finito. Todavia, isso não deve nos levar necessariamente ao desespero, mas deve nos empurrar em direção a fé em Deus, na qual somos redimidos. Fé, que para Kierkegaard, não é mediada racionalmente ou filosoficamente fundamentada em argumentos, como nos sistemas racionalistas, mas antes um salto cego no escuro, conforme exposto na obra Temor e Tremor.
No caminho da vida, o homem procura fugir da angústia, e explora diferentes possíveis existenciais, que são etapas do caminho, ou aquilo que os comentadores chamam de “Lei dos três estágios”[7] que Kierkegaard desenvolve em vários escritos. Os estágios são: o estágio estético, o estágio ético e o estágio religioso.
No estágio estético, o ser humano vive apenas no nível sensual, centrado em si mesmo, no prazer e desfrute material. Como tal vida leva a insatisfação e ao desespero, o homem desesperado salta para um nível mais elevado de existência, o estágio ético, em que procura não mais viver para si mesmo, mas de acordo padrões objetivos de moralidade. Porém, tal pretensão ética nunca é alcançada, levando mais uma vez a culpa e ao desespero. A salvação da existência humana acontece quando o homem dá mais um salto no escuro; o salto para a vida religiosa, na qual “o homem abandona a si mesmo e se entrega a fé unicamente”.[8]
Assim, não é exagero afirmar que toda a filosofia de Kierkegaard pretende conduzir o homem para a fé, onde este encontra-se a si mesmo. Mas não faz isso argumentando mediante bases lógicas ou racionais, como, por exemplo, um Anselmo ou Tomás de Aquino. Antes, sua estratégia apologética (se é que podemos falar em apologética no pensamento de Kierkegaard) é deflagrar o predicamento humano, sua condição desesperadora sem Deus, o vazio da existência no nível estético e ético. Não resta dúvida de que para Kierkegaard “o homem encontra o sentido de sua existência somente na fé em Deus e na radical tomada a sério do cristianismo”.[9]


[1]Cf. W.L. Craig. A veracidade da fé cristã: apologética contemporânea, p. 51-74.
[2]Destaque para Blaise Pascal, Fiódor Dostoiévski e Kierkegaard.
[3]Colin Brown. Filosofia e fé cristã, p. 108.
[4]Em suas próprias palavras: “O presente autor de modo algum é um filósofo. Não entendeu qualquer sistema de filosofia, se é que existe algum, ou esteja terminado […] O presente autor de modo algum é um filósofo. E, sim, poetice et eleganter, um amador que não redige sistema nem promessas de sistema”. (Temor e Tremor, prólogo).
[5]Ibid, p. 112.
[6]Cf. Sören Kierkegaard. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2010.
[7]Cf. Emerich Coreth. Deus no pensamento filosófico, p. 327.
[8]Ibid, p. 328.
[9]Ibid.
fonte: soli deo gloria

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